..
A mais antiga das artes II
Divinas core
Serão as telas de Bosch um prolongamento de seus pesadelos? Ou apenas retinas suplementares para observar a vida? Que é esse ôvo ôco de paredes ruídas, perfurado pelos ramos que partem de suas pernas — troncos plantados sobre sapos gigantescos? O ôvo tem um rosto humano de terrível expressão. E, sobre a cabeça, uma bandeja sustenta um estranho objeto terminado em qualquer coisa como uma flauta, à qual se agarra um personagem, enquanto estranhos seres se movimentam à sua volta. E, acima, as orelhas feridas por uma flecha sufocam a multidão.
Tudo isso é só um detalhe do "Inferno Musical" que compõe o tríptico Jardim âas Delícias, que mede ao todo 220 x 389 cm.
Este é um dos muitos exemplos da imaginação criadora de um dos mais estranhos pintores do Ocidente: o holandês Hieronymus Bosch (1460?-! 516). Sua obra ultrapassou os limites de seu tempo, o século XV, e de seu meio, a Europa em fins da Idade Média. É por isso uma exceção. Poís, em cada época, a pintura seguiu padrões determinados, com um estilo particular de ver e representar o mundo.
Depois de Roma
Depois que Constantino, em 313 d.C, submeteu Roma, seu império, a um reino mais vasto — o de Cristo —, ao adotar o cristianismo como religião oficial, a arte passou a ser fortemente influenciada pela fé crista. Coma divisão em 395, a arte cristã enveredou por rumos diferentes, nas duas porções do Império: ocidental e oriental. O ramo oriental desenvolveu-se prhneiro, a partir do reinado de Justi-niano (527 a 565), estendendo-se sobre o Egi-to, a Pérsia, a Ásia Menor, a Síria, a África do Norte e o exarcado de Ravena (Itália). Sua capital foi Bizâncio.
Em Bizâncio, sede do Império Romano do Oriente, toda a atívídade artística subordinava-se à religião. Os sacerdotes incumbiam a arte da tarefa didática e propagandística de representar os dogmas e as verdades da fé, além cie .exaltar a sagrada pessoa do imperador, considerado o representante de Deus na Terra. E, para que tal finalidade não se perdesse, convencionaram uma série de fórmulas que acabaram por "padronizar" os estilos. da pintura bizantina. O modo de arranjar as composições e distribuir os coloridos era sempre o mesmo. As mãos e os olhos eram sempre iguais. O céu, sempre dourado, numa associação do mais valioso bem terrestre (o ouro) ao bem supremo da salvação da alma- (o céu).
Outra lei a obedecer era a da frontalidade — as figuras eram apresentadas sempre de frente — desprezando a perspectiva e as três dimensões do espaço. A modalidade mais explorada, o mural, era executada através de duas técnicas: a têmpera — mistura de tintas e um adesivo (clara de ôvo ou goma) e subsequente aplicação sobre o estuque ressequido das paredes; e o afresco — aplicação das tintas sobre o revestimento ainda úmido.
Também eram comuns os ícones, já uma espécie de imagens móveis. Representações de Cristo, da Virgem, dos apóstolos e dos santos de maior devoção utilizavam a técnica da encáustica. As tintas eram dissolvidas em cera aquecida, e portanto líquida, que, depois de ser aplicada ao quadro, endurecia pelo resfriamento. Nesse meio tempo podiam ser engastadas pérolas, pedras e metais preciosos.
De tudo o que a arte bizantina realizou, o mais característico foi o mosaico. Com pequenos cubos de mármore, terracota ou esmalte, os artistas bizantinos construíram uma arte decorativa monumental, complemento da arquitetura, a decorar as paredes. Na Igreja de
São Vital, em Ravena, há dois deles, dedicados a Justiniano e Teodora, sua esposa.
A pintura dos murais morais
Enquanto tudo isso acontecia em Bizâncio, na parte ocidental do antigo Império Romano a arte dava seus primeiros passos. As condições não eram muito favoráveis ao seu desenvolvimento. Ao contrário da porção oriental, o Império do Ocidente se atomizara sob o impacto das invasões sucessivas das tribos germânicas. A vida económica regredira. E, nesse processo, muito da herança romana se perdeu.
Místico e temente a Deus, o europeu medieval negava os instintos e as paixões, forças maléficas que o separavam da pureza divina. A partir do século XI, esse estado de espírito coletivo encontra desabafo na arte, que se propõe servir a Deus e exaltar o sentimento religioso dos fiéis. Daí ter abstraído a realidade física exterior para entregar-se a representações idealizadas. E, nesse afã, congregaram-se a ar-
quitetura, a escultura e a pintura no que se chamada românica e dominou todo o ex uma perfeita harmonia na expressão de um mesmo ideal artístico. A arte deste período é chamada românica e dominou todo o ex-Império Romano, desde a Itália até a Gália (França), Germânia, Espanha e Inglaterra. Na arquitetura, as superfícies contínuas predominavam sobre as aberturas (janelas; arcos, ete), propiciando o desenvolvimento da pintura mural, realizada pela técnica do afresco. Pintados para serem vistos a distância, os murais obedeciam a esquemas simples de desenho e colorido. As cores, inicialmente em número reduzido, se foram diversificando ao mesmo tempo que ganhavam em intensidade. Os temas, sempre emprestados à religião, eram representados de duas maneiras: uma, influenciada pelos ícones e mosaicos bizantinos, mostrava figuras convencionais e desenhos geométricos, tudo altamente simbólico. Outra, nitidamente popular, liberta de convencionalismos, era mais espontânea no traçado e na côr.
Original pintura ogival
A última arte de inspiração cristã da Idade Média nasce no século XIII, na região da lie de France, onde se encontra Paris. Chamou-se gótica (de godo, povo germânico que invadiu a Europa nos primeiros séculos da Idade Média), designação pejorativa criada pelos artistas do período posterior — a Renascença — para designar uma arte que se afastara dos padrões clássicos greco-romanos. Mais própria seria a denominação ogival, termo designativo do arco quebrado ou agudo que caracteriza as catedrais, monumentos por excelência dessa arte.
A arquitetura era a principal manifestação da arte gótica e as demais a ela serviam. Eram complementos das estruturas arquitetônicas, às quais se integravam ainda mais completamente do que no período anterior.
As paredes perderam a função de sustentáculo, substituídas pelas colunas. Deixaram assim de ser maciças e contínuas, transformando-se em frágeis estruturas onde se encaixavam
gigantescos vitrais que, com seu feérico colorido, modificado pelas mutações da luz, substituíram a pintura mural. Fora eles, as únicas pinturas decorativas ornamentavam nervuras e arcos ou então os capitéis e as estátuas.
Fora das catedrais, a pintura gótica encontrava expressão em miniaturas e iluminuras (ornamentos que enfeitavam as letras capitulares) que ilustravam livros e pergaminhos inteiramente executados a mão. Foram até o século XIV realizadas com exclusividade pelos monges. Nesse século, ainda, a pintura encontra superfícies para decorar fora das igrejas, nos monumentos civis, palácios e residências. Mas no século XV perde os livros, pois os aperfeiçoamentos ao invento de Gutenberg possibilitam a impressão de -gravuras a partir de matrizes de metal ou madeira. As iluminuras e miniaturas evoluem para pequenos quadros de cavalete. O primeiro, datado de 1360 e atribuído a Girand D'OrIéans, é um retrato de João, o Bom, cujo perfil se recorta sobre fundo dourado. Remota reminiscência bizantina, e uma das últimas, pois os pintores de cavalete italianos dispensaram-nas em seus quadros. Formavam duas escolas: a de, Florença, representada por Giotto di Bondone (1267-1337), de inspiração popular e composição a um só tempo simples e monumental. E a de Siena, mais aristocrática, representada por Símone Martini (1283?-I344), revelando acentuado gosto pelo detalhe, elegância e decorativismo.
Assim dividido, raiou o século XV.
Moldura da arte futura
O novo século destruía, ano a ano, as velhas estruturas medievais, substituindo a economia agrícola pelo comércio e pelo artesanato; trocando o campo pela cidade. A Itália é a primeira a operar estas transformações.
No campo das artes, o século XV limpou dos quadros a influência bizantina, substituindo-a por um certo realismo. O espaço ganha as três dimensões, "o claro-escuro" sugere volumes e imprime verossimilhança às paisagens e às figuras humanas. Os artistas desta fase são pontes entre o estilo anterior e as futuras concepções renascentistas. São por isso chamados pré-renascentistas, indecisos ainda entre o cristianismo e o humanismo que caracterizaria o grande movimento.
A sociedade também se está transformando: as cidades italianas, enriquecidas pelo comércio, são governadas por famílias importantes, protetoras das artes e ciências. A República de Florença, a mais rica e poderosa, torna-se sob a tutela dos Medíeis a capital artística da Europa. Lá trabalham os mais significativos artistas pre-renascentistas. Entre eles destacam-se: Sandro Botticelli (1444M510), típico artista de transição. Seu estilo é linear, não há efeitos de claro-escuro nem impressão de volume, e os motivos decorativos traem a influência das miniaturas góticas. Mas os temas mitológicos de inspiração grega e pagã já anunciam o Renascimento. "O Nascimento de Vénus" e a "Alegoria . da Primavera" estão entre suas obras mais significativas. Tomaso Masaccio (1401-1428) renega vigorosamente as tradições do Oriente para criar uma pintura monumental de grandes espaços e massas e de feição naturalista e inspiração popular. Fra Giovanni da Fiesoie, Fra Angélico (1387-1455), prior do convento dominicano de São Marcos, em Florença, supera o estilo gótico pelas preocupações com a composição e o espaço. Paolo Ucello (1379-1475) aplica em suas composições uma perspectiva rigorosamente traçada, geomerriza as formas, confere-lhes cores sombrias. Piero delia Francesca (1420?-1492) estuda e aplica as regras da composição matemática empregadas na Antiguidade clássica, denominada por Da Vínci "divina proporção". As paisagens e figuras humanas exibem proporções harmoniosas.
Já os maiores avanços técnicos foram obra de flamengos (pintores de Flandres, condado submetido à suserania dos reis. da França, que compreendia o Norte da França e parte da Bélgica). Entre eles destacaram-se os irmãos Jan e Hubert Van Eyck, que inauguraram a pintura a óleo — dissolvendo as tintas em óleo de linhaça —, de execução rápida e fácil, além de oferecer ao artista maiores recursos. O óleo conservou perfeitamente os valores poéticos, as sutilezas de iluminação e o suntuoso colorido gravado nas telas de Jan Van Eyck. Sua arte e técnica fizeram escola, influenciando muitos pintores de vários países. E também flamengo é o notável Hieronymus Bosch.
Entre os demais* pré-renascentistas distinguiram-se os franceses Henri de Bellechose (1380?-1440), Jean Malouel (? 419) e Simon Marmion (1420?-1489), o alemão Martin Schongauer (1445-1491) e os espanhóis Pedro Berruguete (?-I504?) e Bartolomé Bermejo (1425?-1498).
A razão da Renascença
No século XVI, do feudalismo sobrava só uma névoa a embaciar ainda a nova ordem, e que aos poucos vai sendo deixada para trás pela marcha do comércio, pelo desenvolvimento do artesanato, pelos revolucionários feitos da técnica, pela acumulação de capital em mãos burguesas, pela exploração e conquista dos mares e terras. Tudo isso estimulou o desenvolvimento das ciências e das artes. A racionalidade tornou-se o valor supremo, suplantando a fé e o misticismo. As representações místicas deram lugar ao realismo. Mesmo as representações de temas religiosos, que persistem, são humanizadas. Pois o homem é o centro do mundo e medida de todas as coisas. Seu corpo não é mais o inimigo da sua alma, e sim o intérprete. A natureza é a mãe universal. Buscando uma volta dos ideais clássicos de racionalídade e harmonia, o artista do Renascimento cria uma arte original, marcada pela valorização dos dotes racionais do homem, pelo realismo e humanismo.
O movimento tem seus centros em Roma, Veneza e Parma. E são muitos seus artífices.
Leonardo da Vinci (1452-1519), tendo estudado cuidadosamente o corpo humano, arrisca-se pelos labirintos da psicologia. "A Santa Ceia" é um estudo metódico da expressão segundo os caracteres dos diversos personagens. Na "Gioconda" procura fazer o mistério interior aflorar nas vibrações luminosas da atmosfera e na flexibilidade do corpo, conseguidas pelo sfumato,
Rafael Sanzio (1483-1520) criou um protótipo de madona (virgem), de rosto ovalado, semelhante ao das estátuas da antiguidade. Conciliou paganismo e cristianismo, povoando a Bíblia de belas formas gregas. Equilibrou também os elementos essenciais da expressão pictórica — desenho e còr —, contemporizando os ensinamentos das escolas flo-rentina e veneziana, numa atitude típica da escola romana.
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) retirou das estátuas gregas a conformação hercúlea do corpo do homem, que em suas telas estava sempre lutando contra o destino. E era sempre vencido. Assim, Michelangelo rompe o equilíbrio entre beleza e expressão (de que Rafael era o mestre), para dar um toque dramático e violento, que se mostra no "Juízo Final" pintado no teto da Capela Sistina (Vaticano), em que um Deus titânico fulmina a humanidade.
Suas obras foram antevisões do barroco, arte do século que estava por vir.
enc. conhecer abril