28.2.09

Pintura, a mais antiga das artes 2

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A mais antiga das artes II

Divinas core

Serão as telas de Bosch um prolongamento de seus pesadelos? Ou apenas retinas su­plementares para observar a vida? Que é esse ôvo ôco de paredes ruídas, perfurado pelos ramos que partem de suas pernas — troncos plantados sobre sapos gigantescos? O ôvo tem um rosto humano de terrível expressão. E, so­bre a cabeça, uma bandeja sustenta um estra­nho objeto terminado em qualquer coisa como uma flauta, à qual se agarra um personagem, enquanto estranhos seres se movimentam à sua volta. E, acima, as orelhas feridas por uma flecha sufocam a multidão.
Tudo isso é só um detalhe do "Inferno Mu­sical" que compõe o tríptico Jardim âas Delí­cias, que mede ao todo 220 x 389 cm.
Este é um dos muitos exemplos da imagi­nação criadora de um dos mais estranhos pin­tores do Ocidente: o holandês Hieronymus Bosch (1460?-! 516). Sua obra ultrapassou os limites de seu tempo, o século XV, e de seu meio, a Europa em fins da Idade Média. É por isso uma exceção. Poís, em cada época, a pintura seguiu padrões determinados, com um estilo particular de ver e representar o mundo.
Depois de Roma
Depois que Constantino, em 313 d.C, sub­meteu Roma, seu império, a um reino mais vasto — o de Cristo —, ao adotar o cristianismo como religião oficial, a arte passou a ser forte­mente influenciada pela fé crista. Coma divi­são em 395, a arte cristã enveredou por rumos diferentes, nas duas porções do Império: oci­dental e oriental. O ramo oriental desenvol­veu-se prhneiro, a partir do reinado de Justi-niano (527 a 565), estendendo-se sobre o Egi-to, a Pérsia, a Ásia Menor, a Síria, a África do Norte e o exarcado de Ravena (Itália). Sua capital foi Bizâncio.
Em Bizâncio, sede do Império Romano do Oriente, toda a atívídade artística subordina­va-se à religião. Os sacerdotes incumbiam a arte da tarefa didática e propagandística de re­presentar os dogmas e as verdades da fé, além cie .exaltar a sagrada pessoa do imperador, con­siderado o representante de Deus na Terra. E, para que tal finalidade não se perdesse, con­vencionaram uma série de fórmulas que acaba­ram por "padronizar" os estilos. da pintura bi­zantina. O modo de arranjar as composições e distribuir os coloridos era sempre o mesmo. As mãos e os olhos eram sempre iguais. O céu, sem­pre dourado, numa associação do mais valioso bem terrestre (o ouro) ao bem supremo da sal­vação da alma- (o céu).
Outra lei a obedecer era a da frontalidade — as figuras eram apresentadas sempre de frente — desprezando a perspectiva e as três dimensões do espaço. A modalidade mais explo­rada, o mural, era executada através de duas técnicas: a têmpera — mistura de tintas e um adesivo (clara de ôvo ou goma) e subse­quente aplicação sobre o estuque ressequido das paredes; e o afresco — aplicação das tin­tas sobre o revestimento ainda úmido.
Também eram comuns os ícones, já uma espécie de imagens móveis. Representações de Cristo, da Virgem, dos apóstolos e dos santos de maior devoção utilizavam a técnica da encáustica. As tintas eram dissolvidas em cera aquecida, e portanto líquida, que, depois de ser aplicada ao quadro, endurecia pelo resfria­mento. Nesse meio tempo podiam ser engas­tadas pérolas, pedras e metais preciosos.
De tudo o que a arte bizantina realizou, o mais característico foi o mosaico. Com peque­nos cubos de mármore, terracota ou esmalte, os artistas bizantinos construíram uma arte decorativa monumental, complemento da arquitetura, a decorar as paredes. Na Igreja de

São Vital, em Ravena, há dois deles, dedica­dos a Justiniano e Teodora, sua esposa.
A pintura dos murais morais
Enquanto tudo isso acontecia em Bizâncio, na parte ocidental do antigo Império Romano a arte dava seus primeiros passos. As condições não eram muito favoráveis ao seu desenvolvi­mento. Ao contrário da porção oriental, o Im­pério do Ocidente se atomizara sob o impacto das invasões sucessivas das tribos germânicas. A vida económica regredira. E, nesse processo, muito da herança romana se perdeu.
Místico e temente a Deus, o europeu medie­val negava os instintos e as paixões, forças ma­léficas que o separavam da pureza divina. A partir do século XI, esse estado de espírito coletivo encontra desabafo na arte, que se pro­põe servir a Deus e exaltar o sentimento reli­gioso dos fiéis. Daí ter abstraído a realidade física exterior para entregar-se a representações idealizadas. E, nesse afã, congregaram-se a ar-


quitetura, a escultura e a pintura no que se chamada românica e dominou todo o ex uma perfeita harmonia na expressão de um mesmo ideal artístico. A arte deste período é chamada românica e dominou todo o ex-Império Romano, desde a Itália até a Gália (França), Germânia, Espanha e Inglaterra. Na arquitetura, as superfícies contínuas predominavam sobre as aberturas (janelas; arcos, ete), propiciando o desenvolvimento da pintura mural, realizada pela técnica do afres­co. Pintados para serem vistos a distância, os murais obedeciam a esquemas simples de dese­nho e colorido. As cores, inicialmente em núme­ro reduzido, se foram diversificando ao mesmo tempo que ganhavam em intensidade. Os te­mas, sempre emprestados à religião, eram re­presentados de duas maneiras: uma, influen­ciada pelos ícones e mosaicos bizantinos, mos­trava figuras convencionais e desenhos geomé­tricos, tudo altamente simbólico. Outra, niti­damente popular, liberta de convencionalismos, era mais espontânea no traçado e na côr.

Original pintura ogival

A última arte de inspiração cristã da Idade Média nasce no século XIII, na região da lie de France, onde se encontra Paris. Chamou-se gótica (de godo, povo germânico que invadiu a Europa nos primeiros séculos da Idade Mé­dia), designação pejorativa criada pelos artis­tas do período posterior — a Renascença — para designar uma arte que se afastara dos padrões clássicos greco-romanos. Mais própria seria a denominação ogival, termo designativo do arco quebrado ou agudo que caracteriza as catedrais, monumentos por excelência dessa arte.
A arquitetura era a principal manifestação da arte gótica e as demais a ela serviam. Eram complementos das estruturas arquitetônicas, às quais se integravam ainda mais completamente do que no período anterior.
As paredes perderam a função de susten­táculo, substituídas pelas colunas. Deixaram assim de ser maciças e contínuas, transforman­do-se em frágeis estruturas onde se encaixavam
gigantescos vitrais que, com seu feérico colorido, modificado pelas mutações da luz, substituí­ram a pintura mural. Fora eles, as únicas pin­turas decorativas ornamentavam nervuras e arcos ou então os capitéis e as estátuas.
Fora das catedrais, a pintura gótica encon­trava expressão em miniaturas e iluminuras (ornamentos que enfeitavam as letras capitu­lares) que ilustravam livros e pergaminhos in­teiramente executados a mão. Foram até o século XIV realizadas com exclusividade pelos monges. Nesse século, ainda, a pintura encon­tra superfícies para decorar fora das igrejas, nos monumentos civis, palácios e residências. Mas no século XV perde os livros, pois os aperfeiçoamentos ao invento de Gutenberg possibilitam a impressão de -gravuras a partir de matrizes de metal ou madeira. As iluminu­ras e miniaturas evoluem para pequenos qua­dros de cavalete. O primeiro, datado de 1360 e atribuído a Girand D'OrIéans, é um retrato de João, o Bom, cujo perfil se recorta sobre fundo dourado. Remota reminiscência bizantina, e uma das últimas, pois os pintores de cavalete italianos dispensaram-nas em seus quadros. Formavam duas escolas: a de, Florença, representada por Giotto di Bondone (1267-1337), de inspiração popular e compo­sição a um só tempo simples e monumental. E a de Siena, mais aristocrática, representada por Símone Martini (1283?-I344), revelando acen­tuado gosto pelo detalhe, elegância e decorativismo.
Assim dividido, raiou o século XV.

Moldura da arte futura
O novo século destruía, ano a ano, as velhas estruturas medievais, substituindo a economia agrícola pelo comércio e pelo artesanato; tro­cando o campo pela cidade. A Itália é a pri­meira a operar estas transformações.
No campo das artes, o século XV limpou dos quadros a influência bizantina, substituin­do-a por um certo realismo. O espaço ganha as três dimensões, "o claro-escuro" sugere vo­lumes e imprime verossimilhança às paisagens e às figuras humanas. Os artistas desta fase são pontes entre o estilo anterior e as futuras concepções renascentistas. São por isso chama­dos pré-renascentistas, indecisos ainda entre o cristianismo e o humanismo que caracterizaria o grande movimento.
A sociedade também se está transformando: as cidades italianas, enriquecidas pelo comércio, são governadas por famílias importantes, protetoras das artes e ciências. A República de Florença, a mais rica e poderosa, torna-se sob a tutela dos Medíeis a capital artística da Eu­ropa. Lá trabalham os mais significativos artis­tas pre-renascentistas. Entre eles destacam-se: Sandro Botticelli (1444M510), típico artista de transição. Seu estilo é linear, não há efeitos de claro-escuro nem impressão de volume, e os motivos decorativos traem a influência das mi­niaturas góticas. Mas os temas mitológicos de inspiração grega e pagã já anunciam o Renas­cimento. "O Nascimento de Vénus" e a "Alegoria . da Primavera" estão entre suas obras mais significativas. Tomaso Masaccio (1401-1428) renega vigorosamente as tradi­ções do Oriente para criar uma pintura monu­mental de grandes espaços e massas e de feição naturalista e inspiração popular. Fra Giovanni da Fiesoie, Fra Angélico (1387-1455), prior do convento dominicano de São Marcos, em Florença, supera o estilo gótico pelas preocupa­ções com a composição e o espaço. Paolo Ucello (1379-1475) aplica em suas composições uma perspectiva rigorosamente traçada, geomerriza as formas, confere-lhes cores sombrias. Piero delia Francesca (1420?-1492) estuda e apli­ca as regras da composição matemática emprega­das na Antiguidade clássica, denominada por Da Vínci "divina proporção". As paisagens e fi­guras humanas exibem proporções harmoniosas.
Já os maiores avanços técnicos foram obra de flamengos (pintores de Flandres, condado submetido à suserania dos reis. da França, que compreendia o Norte da França e parte da Bélgica). Entre eles destacaram-se os irmãos Jan e Hubert Van Eyck, que inauguraram a pintura a óleo — dissolvendo as tintas em óleo de linhaça —, de execução rápida e fácil, além de oferecer ao artista maiores recursos. O óleo conservou perfeitamente os valores poéticos, as sutilezas de iluminação e o suntuoso colorido gravado nas telas de Jan Van Eyck. Sua arte e técnica fizeram escola, influenciando muitos pintores de vários países. E também flamengo é o notável Hieronymus Bosch.
Entre os demais* pré-renascentistas distingui­ram-se os franceses Henri de Bellechose (1380?-1440), Jean Malouel (? 419) e Simon Marmion (1420?-1489), o alemão Martin Schongauer (1445-1491) e os espanhóis Pedro Berruguete (?-I504?) e Bartolomé Bermejo (1425?-1498).


A razão da Renascença

No século XVI, do feudalismo sobrava só uma névoa a embaciar ainda a nova ordem, e que aos poucos vai sendo deixada para trás pela marcha do comércio, pelo desenvolvimento do artesanato, pelos revolucionários feitos da técnica, pela acumulação de capital em mãos burguesas, pela exploração e conquista dos mares e terras. Tudo isso estimulou o de­senvolvimento das ciências e das artes. A racionalidade tornou-se o valor supremo, suplan­tando a fé e o misticismo. As representações místicas deram lugar ao realismo. Mesmo as representações de temas religiosos, que persis­tem, são humanizadas. Pois o homem é o cen­tro do mundo e medida de todas as coisas. Seu corpo não é mais o inimigo da sua alma, e sim o intérprete. A natureza é a mãe universal. Buscando uma volta dos ideais clássicos de racionalídade e harmonia, o artista do Renasci­mento cria uma arte original, marcada pela valorização dos dotes racionais do homem, pelo realismo e humanismo.
O movimento tem seus centros em Roma, Veneza e Parma. E são muitos seus artífices.
Leonardo da Vinci (1452-1519), tendo es­tudado cuidadosamente o corpo humano, arrisca-se pelos labirintos da psicologia. "A Santa Ceia" é um estudo metódico da expressão segundo os caracteres dos diversos personagens. Na "Gioconda" procura fazer o mistério inte­rior aflorar nas vibrações luminosas da atmos­fera e na flexibilidade do corpo, conseguidas pelo sfumato,
Rafael Sanzio (1483-1520) criou um protótipo de madona (virgem), de rosto ova­lado, semelhante ao das estátuas da antigui­dade. Conciliou paganismo e cristianismo, povoando a Bíblia de belas formas gregas. Equilibrou também os elementos essenciais da expressão pictórica — desenho e còr —, con­temporizando os ensinamentos das escolas flo-rentina e veneziana, numa atitude típica da escola romana.
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) re­tirou das estátuas gregas a conformação hercúlea do corpo do homem, que em suas telas estava sempre lutando contra o destino. E era sempre vencido. Assim, Michelangelo rompe o equilíbrio entre beleza e expressão (de que Rafael era o mestre), para dar um toque dramático e violento, que se mostra no "Juízo Final" pintado no teto da Capela Sistina (Vaticano), em que um Deus titânico fulmina a humanidade.
Suas obras foram antevisões do barroco, arte do século que estava por vir.

enc. conhecer abril