4.3.09

Leonidas da Silva, o diamante negro.

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Diamante Negro

Isolado do mundo pelo Mal de Alzheimer e pelo esquecimento dos fãs, o Diamante Negro Leônidas da Silva chega aos 90 anos. por renato modernel
AQUI FORA, QUASE NINGUÉM mais sabe quem foi Leôni­das da Silva. Nem ele mesmo sabe, lá dentro. Prestes a completar 90 anos, em 6 setembro, seu contato com o mundo é quase zero. Alzheimer não é o nome de um zagueiro sueco, que ele poderia driblar com facilidade em 1938. É a doença do esquecimento, que suga ideias e referências.
Na internet, onde tudo pode ser co­mentado, dizem até que Leônidas já morreu. O equívoco não poupa torce­dores do São Paulo, cuja camisa ele honrou como poucos craques o fize­ram com qualquer camisa, de qualquer time, em qualquer tempo. Foi compa­rado a Pele. Jamais saberemos se foi exagero. De Pele, temos imagens em ví­deo e celulóide. De Leônidas, retratos antigos. Ele aparece elegante, de bigodinho aparado e cabelos lustrosos.
Leônidas foi do tempo do rádio e da brilhantina. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1913. Começou em times menores, como São Cristóvão e Bonsucesso; pas­sou pelo Peñarol, de Montevidéu; defen­deu a Seleção Brasileira na Copa da Itá­lia, em 1934, vencida pelos anfitriões. No ano seguinte, o Botafogo o contratou com o salário astronómico de 1 conto de réis por mês. Ele sagrou-se campeão ca­rioca e aí foi para o Flamengo.
Atingiu o ápice na Copa de 1938, na França, novamente vencida pela Azzurra. O Brasil tinha um timaço (aliás, dois: um "leve" e outro "pesado", que usava conforme o adversário), mas a sobra de talento não compensou a inex­periência. A derrota fatal, em Marselha, por 2 a 1, diante dos italianos (que se­riam bicampeões) foi a despedida de uma geração de grandes jogadores.
Nesse dia fatídico, o time não teve Leô­nidas, poupado para a final em Paris, tida como certa. Os brasileiros até come­moraram por antecipação, caindo numa esbórnia de taças espumantes; e, após a derrota, os cartolas se recusaram, por des­peito, a ceder aos vencedores as passa­gens aéreas para a capital. A Copa de 1938 foi um golpe em nossa soberba, uma dolorosa ressaca de champanhe.

A EXEMPLO DE MAGHADO DE ASSIS, NÃO TEM HERDEIROS DIRETOS. SEU LEGADO SÃO OS GOLS QUE NÃO PUDEMOS VER
Leônidas foi um herói dentro de uma desventura. Artilheiro da competição, com oito gois, encantara as plateias fran­cesas com a agilidade e o brilho de suas jogadas. Chamaram-no de "Homem de Borracha" e "Diamante Negro". O primei­ro apelido, vá lá, podia não ser dos mais recomendáveis. Fora igualmente atribuído ao também legendário ladrão íta-lo-brasileiro Amleto Gino Meneghetti, que palmilhava os telhados e pilhava os cofres da burguesia paulistana.
O segundo apelido, entretanto, era quase um título nobiliárquico. Ele teria sido "concedido" por Assis Chateau-briand, principal empresário brasileiro no ramo das comunicações e dono da fá­brica de chocolates Lacta, que pagou 3 contos a Leônidas para lançar um produ­to que se valia da sua imagem pública.
Houve também uma certa marca de ci­garros "Leônidas" no tempo em que era cabível associar ao tabaco o nome de um atleta. E poderia ter havido (por que não?) também uma bicicleta "Leôni­das", se Chato a fabricasse. Leônidas foi o divulgador e possível inventor dessa jogada de grande precisão e efeito vi­sual, que envolve uma pedalada no ar.
Nelson Rodrigues celebrou nele o supra-sumo da molecagem, marca regis­trada do craque brasileiro. Um ídolo das massas. Leônidas foi o primeiro joga­dor nacional a ter o nome e a imagem explorados para finalidades comerciais.
O chocolate Diamante Negro, de ele­gante embalagem escura, existe até ho­je. Leônidas também. Mas pouco sabe­mos dele: é um dos cerca de 170 inter­nos do Recanto São Camilo, enorme po­rém acolhedora clínica geriátrica no centro da Granja Viana, no município de Cotia, a meia hora de São Paulo.
O prédio luminoso, no topo de uma co­lina, tem algo de mosteiro italiano, com hospitaleiras arcadas e um pátio interno de primorosos jardins. Flores não faltam. Mas Leônidas quase não sai do quarto. Passa os dias sentado numa cadeira de ro­das, com a cabeça pendida para a frente. Às vezes, lhe colocam audiofones para que possa ouvir antigas canções de Orlan­do Silva e Francisco Alves, gravadas em fitas cassete por sua fiel companheira,

Albertina Pereira dos Santos, de 75 anos, que o acompanha desde 1956. Outras vezes, ligam o aparelho de tevê, também comprado por ela, para que Leônidas possa ver o São Paulo jogar.


0 que ele vê na tela? Essa doença é co­mo se os refletores do estádio apagassem lentamente. Um certo cromossomo, o de número 21, desencadeia a ação de subs­tâncias que vão formando placas senis nas células cerebrais. Outros (9, 10, 14, 19...) também participam, como jogado­res em equipe, mas não se sabe bem co­mo. Aos poucos, os danos neurológicos se refletem na musculatura; até mesmo engolir a comida pode ficar complicado. Não há muito o que fazer.

Leônidas já não fala, apenas emite sons desconexos. }á não se rebela nem tenta fugir, como antes. Nem mesmo re­conhece as pessoas. Mas o São Paulo não o abandonou. Desde 1995, o clube custeia a sua internação na clínica. Há razões de sobra para isso. Com a cami­sa do tricolor paulista, Leônidas viveu anos de glória. Quando chegou do Rio, em 1942, mais de 10 mil paulistanos fo­ram esperá-lo na estação ferroviária. E, precisamente, 70.281 espectadores (re­corde nacional na época) foram ver a sua estreia no então Estádio do Pacaem-bu; inaugurado dois anos antes. Leôni­das não marcou gois. Mas esse jogo, contra o Corinthians, que terminou em­patado em 3x3, assinalou o início de sua epopeia paulista: entre 1943 e 1949, ele ganhou cinco títulos estaduais.
Uma circunstância maior impediu que sua arte voltasse a brilhar nos grama­dos do mundo. A Segunda Guerra Mun­dial não permitiu a realização das Copas de 1942 e 1946; e esse lapso de ri anos coincidiu com a fase de brilho máximo do Diamante Negro. Quando o futebol in­ternacional foi restabelecido, com os oceanos livres de torpedos, já estava na hora de Leônidas pendurar as chuteiras.
Em 1951, aos 37 anos, ele trocou a bola pelo microfone. Como comentarista es­portivo das rádios Record e Jovem Pan, ganhou sete trofeus Roquete Pinto. Co­briu três Copas, sempre acompanhado pela inseparável Albertina, sua terceira mulher. Ela ficava a seu lado na cabine de transmissão e depois brincava de dar notas por seu trabalho como cronista.
Hoje, a companheira de quase meio sé­culo visita Leônidas duas vezes por sema­na, na clínica, e trata de regular o seu con-tato com o mundo externo, para não em­panar o brilho de uma lenda. Não tive­ram filhos juntos. O único que Leônidas teve, do primeiro casamento, morreu afo­gado com poucos anos de vida. Portanto, o Diamante Negro não tem herdeiros di-retos, a exemplo de Machado de Assis. Seu legado é uma forma de arte mais vo­látil: os gois que não pudemos ver. Entre nós, aqui fora dos muros da clínica, tam­bém grassa a doença do esquecimento.


www.cartaeapttal.com.b Leônidas da Silva chega aos 90 anos. por renato modernel.

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