4.3.09

Medicina I, efeito e cura

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O longo caminho do efeito à cura

Simples, intuitiva, rudimentar e ins­tintiva despontou a medicina entre os homens primitivos; primárias no­ções os orientavam, relacionadas ex­clusivamente às enfermidades de causas externas, visíveis e demonstráveis: os ferimentos causados por um espinho, uma pedra, ou as infestações parasitárias, por exemplo. E era relativamente fácil comba­tê-las: retirado o corpo estranho, a natureza se incumbia de continuar a cura Daí che­gou-se à valorização dos elementos naturais de propriedades balsâmicas: a luz do sol, o calor, a água e posteriormente, as plantas.
Mas, quando a causa não era identificá­vel, a carência de uma explicação racional forjava a atribuição da doença a agentes misteriosos e mágicos: às estrelas e a outros corpos, celestes ou terrestres. Assim firmou-se a crença de que os astros determinavam o curso da vida humana.
A medicina mágica surgiu, então, como deficiência da medicina empírica: o que ela não podia resolver era computado como atuação sobrenatural — de estrelas, aves ma­lignas, etc. E o combate a essas forças — a medicina mágica — incluía o sacrifício de animais sagrados (o cordeiro e a vaca, por exemplo) ou a intervenção de homens hábeis na arte de comunicar-se com elas. e que por orações e ameaças deviam fazê-las retroceder. Essa terapêutica incluía o em­prego de fórmulas mágicas, encantamentos, sortilégios; o porte de ossos, cinzas de mor­tos, garras e dentes de animais; e a ingestão de órgãos de animais ou inimigos mortos. Típica demonstração da crença na luta entre o Bem e o Mal.
Estreita foi a relação que a medicina pri­mitiva manteve, por um lado, com a observa­ção da natureza e, por outro, com as crenças místicas. Mesmo assim, produziu uma técni­ca cirúrgica bastante eficiente: tanto para a extração de corpos estranhos, abertura de abscessos e sangrias, quanto para operações mais sérias como a trepanação do crânio — uma das mais antigas de que se tem notícia. Para todas, valiam-os mesmos instrumentos: pedras aguçadas. E a mesma motivação místi­ca, afastada de qualquer intuito científico.

O fígado da Mesopotâmia
"Quando o rei da Babilónia ficou diante da encruzilhada de dois caminhos, para em­pregar as divinações e tirar a sorte, jogou flechas para o alto, consultou os ídolos, exa­minou o fígado." É que esse órgão, para a medicina da Mesopotâmia, era o mais im­portante do corpo: era considerado veículo das forças vitais. E, por ser maior que o ba­ço, simbolizava o êxito e a força futura. Nos momentos de decisão, perscrutavam-se em seus dois lobos as marcas do destino. Essa crença era comum a muitos povos da Anti­guidade, desde os sumérios até os romanos.
A medicina da Mesopotâmia, de funda­mentos eminentemente mágicos e prática predominantemente sacerdotal, é a mais an­tiga que se conhece. Ligada à astronomia — naquela época e conjuntura estudada in­tensamente — caracterizou-se pela relação que estabelecia entre o movimento dos astros e a manifestação de certas doenças. E ainda por dar ao sol (para ela fonte de todas as formas de vida) um enorme valor terapêuti­co. Os mesopotâmios pareciam intuir a pro­priedade que os raios solares têm de ativar a vitamina D da epiderme.
Outro elemento sagrado era a água:, as abluções constituíam verdadeiros rituais, bem como os banhos e as compressas quen­tes ou trias; todas tentativas de expulsar os demónios do corpo enfermo. Da natu­reza colhiam ainda as drogas curativas, ge­ralmente raízes de plantas, como a oliveira, o alho, etc, e minerais, como o cobre e o ferro.
A cirurgia da Mesopotâmia, entretanto, nada acrescentou às práticas primitivas — só na expressão profissional. As atividades dos cirurgiões foram organizadas: o Código de Hamurabi configurou vários delitos de res­ponsabilidade civil e penal para os médicos; considerou-os profissionais. E, ainda das disposições, transparecem a frequência das intervenções cirúrgicas e os conhecimentos de anatomia. "Se um médico produzir feri­mento grave com uma faca de operação e matar, ou abrir um abscesso e destruir um olho, suas mãos serão cortadas."

O Egito higiénico
O sistema de medicina pré-científico que mais deixou vestígios foi o egípcio. Diferiu do mesopotâmico, substancialmente, ao con­ferir à respiração supremacia sobre o fíga­do, como função vital. Uma série de princípios mágicos a informava, bem como normas de higiene impostas principalmente a seus praticantes, os sacerdotes: deveriam banhar-se duas vezes ao dia e duas à noite, e cortar os cabelos de 3 em 3 dias. Talvez por essa integração à esfera religiosa a hi­giene se tenha desenvolvido tanto, evoluin­do para uma espécie de medicina social: toda uma gama de instruções, para os enterros, limpeza das habitações, prática de higiene pessoal, era ministrada à população.
A terapêutica dos egípcios ziguezagueava entre o místico e o prático: linimentos, poções, cataplasmas, mel, sal, óleo de cedro, cascas de árvores, sulfato de cobre, vísceras — miolo, fígado, coração — chifre de veado. óleo de camomila, etc, foram largamente uti­lizados. Os médicos, tidos em alta conta, dispunham de inúmeros benefícios, a ponto de constituírem uma casta privilegiada. O máximo de prestígio se manifestava na sua deificação: Imnhotep, médico do rei Zoser. da terceira dinastia, foi consagrado deus, e em sua honra erigiram-se vários templos.

À estética na índia
Da medicina na antiga índia pouco se conhece. Mas certo está que manteve seu caráter primitivo por muito mais tempo que a dos demais povos da Antiguidade, talvez pelas limitações originadas de proibições re­ligiosas, como a da dissecção de cadáveres.
A base das prescrições terapêuticas era a dieta, quase sempre vegetariana. Havia, in­clusive, leis contra o abuso de licores. Fre­quentemente valia-se das plantas medicinais, como os clisteres oleosos; e para completar os tratamentos, banhos de vapor sob as mais variadas formas, inalações, sangrias e ven­tosas.
A cirurgia hindu é que foi prodigiosa. Aperfeiçoou a técnica das operações plásti­cas, que só seriam efetuadas pelos ociden­tais no período medieval, sobretudo a rino-plastía, operação de restauração do nariz. Para tanto utilizavam, como instrumentos, facas, serras, ventosas, tesouras, ganchos, fórceps, sondas e agulhas para sutura.
No mais, também entre eles a higiene se desenvolveu por sua sacralização: os sacer­dotes e legisladores, figuras muito importan­tes na sociedade, tinham a higiene como componente de seu código moral. Assim, as abluçoes, por exemplo, eram observadas com o maior rigor, em verdadeiras liturgias.
De qualquer forma, a medicina da antiga índia enquadra-se nos sistemas pré-científicos.

Na Grécia, mais científica
Só na Grécia é que a medicina evolui para algo mais próximo a uma ciência. Várias condições possibilitaram esse avanço, mas sobretudo uma maior liberdade de pen­samento, investigação e observação, e uma estrutura político-religiosa mais lúcida.
Assim, a medicina deixa de ser resultado de práticas isoladas e experiências aciden­tais, para ser objeto de aprofundado estudo. Grupos de discípulos, com seus mestres, es­peculam as causas e razões da vida, inde­pendentemente de qualquer culto: a religião não passa de um mito poético, bastante vul­nerável, bem como todas as demais tradições.
Esse clima criou Hipócrates. Nascido em 460 a.C., é tido como pai da Medicina. Suas formulações práticas e teóricas trans­mitiram-se por muitos séculos, síntese dos conhecimentos esparsos anteriores, que coli­giu e enriqueceu com novos conceitos e in­vestigações. Provou que a doença é um pro­cesso natural, c a função do médico foi por ele definida como de ajuda às forças naturais do organismo.
Três séculos depois da morte de Hipó­crates, suas noções foram sistematizadas no uue se chamou "Coleção Hipocratica": são vários compêndios, entre os quais o "Jura­mento Hipocrático", tratado de ética profis­sional; "Sobre os Ferimentos da Cabeça", exposição dos métodos de trepanação; "Sobre as Fraturas e Deslocamentos"; "Sobre a Ci­rurgia"; "Prognóstico", coletânea de teorias para a previsão do curso das doenças; e "Aforismos", uma série de frases breves, resumindo determinados conhecimentos ge­rais. Muitos entraram para o repertório dos provérbios populares.
Entre as doenças que catalogou estão: cirrose, caxumba, difteria, erisipela, câncer, doenças do sistema nervoso e febres. E, para tratá-las, a diretriz hipocratica era auxiliar a natureza em seus processos e poderes curativos. No livro "Do Alimento", diz: "A natureza age sem mestres".
Em síntese, a medicina hipocratica com­binou um amplo conhecimento de ciências naturais à rica experiência em medicina prá­tica, e a um raciocínio lógico e lúcido a respeito das relações de causalidade.

A anatomia em Roma
Os romanos foram um povo de cultura deficiente até conquistarem a Grécia, quan­do absorveram, além dos sistemas filosóficos, o da medicina, embora sem aprofundá-los. Daí a ausência, nesse período, de nomes notáveis. A educação médica constituía assunto privado, ao contrário, poi exemplo, da educação militar. E mesmo entre os pro­fessores, o mais importante era grego: As-clepíades de Bitínia (século II a.C.).
Sua escola, em Roma, sobreviveu-lhe. No mícío, os alunos eram poucos, depois forma­ram grupos, e logo estavam sendo estabele­cidas escolas subsidiárias nas cidades vizi­nhas. Promoviam, essencialmente, o treino de médicos militares, embora não houvesse nessa esfera nenhum interesse científico. Assim, paradoxalmente, a maior contribuição para o desenvolvimento da medicina ro­mana veio do exército: o sistema hospitalar.
Houve, também, de relevante, a presença de Galeno. Viveu de 130 a 200 d.C, num dos muitos domínios de Roma, Pérgamo — reino da Ásia Menor —. culturalmente mui­to próximo da Grécia. Foi o primeiro dos es­tudiosos romanos de anatomia e fisiologia, e forneceu uma síntese médica final da Anti­guidade, padrão efetivo da medicina duran­te treze séculos. É de grande valor sua obra, principalmente pela elucidação de erros an­teriores. Vesálio demonstrou que Galeno ha­via incorrido em erros justificáveis na sua época, mas que não podiam continuar sendo conscientemente aceitos.
De qualquer forma, Galeno deu à ana­tomia e à fisiologia a feição de ciência. As invasões bárbaras impediram que esse trabalho frutificasse, que sua influência se expandisse. E não só em relação aos ensina­mentos de Galeno, como de todos os demais: a medicina volta a escorar-se em conceitos e preconceitos, mágicos e religiosos.


Uma questão de sobrevivência
Na Idade Média, a medicina é uma ver­são deturpada do que se pensava ter sido o galenismo. No entanto, a obra de Galeno e a de Hipócrates não permaneceram longo tempo no esquecimento. Com o propósito de estudar suas obras, revè-las e atualizá-las, fundou-se, no século IX, a Escola de Sa-lerno. Em pouco tempo ganhou fama e, com ela, estudantes do mundo todo. Mas os assun­tos eram tidos por esgotados, e a investigação dispensada. Não havia ciência, portanto; e só no século XVI a medicina reaparecia como tal, inclusive com método próprio.
Um conjunto de fatôres propiciou esse ressurgimento. Entre eles, a invenção da imprensa, a expansão do mundo pelos des­cobrimentos, a renovação do interesse pela língua grega, o questionamento levantado pelas dissensões religiosas. Cientistas e estu­diosos eram a mais nova aquisição da hu­manidade, para desfazer seus antigos erros e agitar a estagnação em que se acomodara.
Nesse panorama se situou André Vesálio, pai da anatomia: publica a "Estrutura do Corpo Humano", em 1453. Totalmente ino­vador, esse trabalho foi o resultado das pri­meiras experiências efetuadas com cadáveres. Embora Vesálio houvesse repetido muitos enganos cometidos por Galeno, eram justi­ficáveis pela época em que viveu. Como o período fosse propício aos estudos, Vesálio foi seguido por muitos outros pesquisado­res: William Harvey dedica uma obra à ex­posição de duas conclusões sobre o funciona­mento do coração como sede do sistema circulatório, que até então se pensava fosse o fígado. Quase contemporaneamente, o ita­liano Marcelo Malpighi descobre os vasos capilares. Alguns decénios depois, João Ba-tista Morgagni constata a diferença de estru­tura entre os órgãos sadios e os enfermos. Cria a anatomia patológica. Em 1796, Ed-ward Jenner descobre a vacina contra a varíola.
No século XVIII, surgiria William Smel-lie, escocês, o primeiro a se interessar pela natalidade e a obstetrícia. O século XIX traria revelações importantíssimas. Graças aos estudos de Louis Pasteur, foram desco­bertos os germes patogênicos, microscópicos geradores das doenças infecciosas. Tam­bém graças a êle foram minorados dois pe­rigosos flagelos: o carbúnculo e a raiva.

Outros germes de doenças foram isolados. A etapa que sucede à identificação do bacilo é estabelecer o meio de anular sua ação. É a medicina preventiva, à base de soros, vacinas e eficazes medicamentos.
Em 1815, Faraday atinou com as proprie­dades anestésicas do éter. Ainda com base nas pesquisas de Pasteur, Lister eliminou os germes do campo operatório, vaporizando a sala de operação com ácido fênico, abrindo assim perspectivas para intervenções antes consideradas impossíveis, devido à incidência da septicemia — infecção gerada por germes do ar. Em 1896, Wilhelm Roentgen anun­ciou a descoberta dos raios X, o que lhe valeu o prémio Nobel em 1901.
E neste nosso século, destrelou-se a roda do progresso: em 1904, o alemão Paul Ehrlich utilizou uma droga capaz de matar os parasitos no tecido de um hospedeiro — receptor do parasito — sem afetar o hospe­deiro; em 1928, Sir Alexander Fleming che gou à peniciíina; já em 1912, Casimiro Funk isolara o ácido nicotínico, denominando-o "vitamina"; em 1921, Banting e Best isola­ram o hormônio insulina, possibilitando o tratamento do diabetes — excesso de açúcar no sangue. Outros germes de doenças foram sendo grada ti vãmente descobertos: R. Koch isolou o bacilo da tuberculose e da cólera; E. Klebs e F. Loeífle, o da difteria; G. Han-sen, da lepra; K. Eberth, da febre tifóide; A. Fraenkel, da pneumonia; A. Nicolayer, do tétano; A. Yersin, da peste bubônica; Vasserman, da sífilis.


Medicina

O curandeiro, "mé­dico" primitivo, trocou as vestes e máscaras coloridas por outras brancas e esterilizadas. O espírito de intuição que o orientava cedeu lugar ao espírito cien­tífico. A tribo trans­formou-se em grandes sociedades industriais e urbanas, com doenças específicas, como o câncer. E a rudimentar arte de curar ramifi­cou-se em inúmeras especializações, todas com o mesmo objeti-vo: prolongar a vida. E cada especialidade, com seus próprios instru­mentos: da esquerda para a direita, proveta para o exame de urina (urologia); aparelho ra-diológico (tisiologia); broca elétrica (odonto­logia); espelho frontal (oftalmologia); especulo auricular (otorrinola­ringologia); eletroence-faló grafo (neurologia); eletrocardiógrafo (car­diologia); e o leito clíni­co usado em hospitais.

enc. conhecer abril
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