..
O longo caminho do efeito à cura
Simples, intuitiva, rudimentar e instintiva despontou a medicina entre os homens primitivos; primárias noções os orientavam, relacionadas exclusivamente às enfermidades de causas externas, visíveis e demonstráveis: os ferimentos causados por um espinho, uma pedra, ou as infestações parasitárias, por exemplo. E era relativamente fácil combatê-las: retirado o corpo estranho, a natureza se incumbia de continuar a cura Daí chegou-se à valorização dos elementos naturais de propriedades balsâmicas: a luz do sol, o calor, a água e posteriormente, as plantas.
Mas, quando a causa não era identificável, a carência de uma explicação racional forjava a atribuição da doença a agentes misteriosos e mágicos: às estrelas e a outros corpos, celestes ou terrestres. Assim firmou-se a crença de que os astros determinavam o curso da vida humana.
A medicina mágica surgiu, então, como deficiência da medicina empírica: o que ela não podia resolver era computado como atuação sobrenatural — de estrelas, aves malignas, etc. E o combate a essas forças — a medicina mágica — incluía o sacrifício de animais sagrados (o cordeiro e a vaca, por exemplo) ou a intervenção de homens hábeis na arte de comunicar-se com elas. e que por orações e ameaças deviam fazê-las retroceder. Essa terapêutica incluía o emprego de fórmulas mágicas, encantamentos, sortilégios; o porte de ossos, cinzas de mortos, garras e dentes de animais; e a ingestão de órgãos de animais ou inimigos mortos. Típica demonstração da crença na luta entre o Bem e o Mal.
Estreita foi a relação que a medicina primitiva manteve, por um lado, com a observação da natureza e, por outro, com as crenças místicas. Mesmo assim, produziu uma técnica cirúrgica bastante eficiente: tanto para a extração de corpos estranhos, abertura de abscessos e sangrias, quanto para operações mais sérias como a trepanação do crânio — uma das mais antigas de que se tem notícia. Para todas, valiam-os mesmos instrumentos: pedras aguçadas. E a mesma motivação mística, afastada de qualquer intuito científico.
O fígado da Mesopotâmia
"Quando o rei da Babilónia ficou diante da encruzilhada de dois caminhos, para empregar as divinações e tirar a sorte, jogou flechas para o alto, consultou os ídolos, examinou o fígado." É que esse órgão, para a medicina da Mesopotâmia, era o mais importante do corpo: era considerado veículo das forças vitais. E, por ser maior que o baço, simbolizava o êxito e a força futura. Nos momentos de decisão, perscrutavam-se em seus dois lobos as marcas do destino. Essa crença era comum a muitos povos da Antiguidade, desde os sumérios até os romanos.
A medicina da Mesopotâmia, de fundamentos eminentemente mágicos e prática predominantemente sacerdotal, é a mais antiga que se conhece. Ligada à astronomia — naquela época e conjuntura estudada intensamente — caracterizou-se pela relação que estabelecia entre o movimento dos astros e a manifestação de certas doenças. E ainda por dar ao sol (para ela fonte de todas as formas de vida) um enorme valor terapêutico. Os mesopotâmios pareciam intuir a propriedade que os raios solares têm de ativar a vitamina D da epiderme.
Outro elemento sagrado era a água:, as abluções constituíam verdadeiros rituais, bem como os banhos e as compressas quentes ou trias; todas tentativas de expulsar os demónios do corpo enfermo. Da natureza colhiam ainda as drogas curativas, geralmente raízes de plantas, como a oliveira, o alho, etc, e minerais, como o cobre e o ferro.
A cirurgia da Mesopotâmia, entretanto, nada acrescentou às práticas primitivas — só na expressão profissional. As atividades dos cirurgiões foram organizadas: o Código de Hamurabi configurou vários delitos de responsabilidade civil e penal para os médicos; considerou-os profissionais. E, ainda das disposições, transparecem a frequência das intervenções cirúrgicas e os conhecimentos de anatomia. "Se um médico produzir ferimento grave com uma faca de operação e matar, ou abrir um abscesso e destruir um olho, suas mãos serão cortadas."
O Egito higiénico
O sistema de medicina pré-científico que mais deixou vestígios foi o egípcio. Diferiu do mesopotâmico, substancialmente, ao conferir à respiração supremacia sobre o fígado, como função vital. Uma série de princípios mágicos a informava, bem como normas de higiene impostas principalmente a seus praticantes, os sacerdotes: deveriam banhar-se duas vezes ao dia e duas à noite, e cortar os cabelos de 3 em 3 dias. Talvez por essa integração à esfera religiosa a higiene se tenha desenvolvido tanto, evoluindo para uma espécie de medicina social: toda uma gama de instruções, para os enterros, limpeza das habitações, prática de higiene pessoal, era ministrada à população.
A terapêutica dos egípcios ziguezagueava entre o místico e o prático: linimentos, poções, cataplasmas, mel, sal, óleo de cedro, cascas de árvores, sulfato de cobre, vísceras — miolo, fígado, coração — chifre de veado. óleo de camomila, etc, foram largamente utilizados. Os médicos, tidos em alta conta, dispunham de inúmeros benefícios, a ponto de constituírem uma casta privilegiada. O máximo de prestígio se manifestava na sua deificação: Imnhotep, médico do rei Zoser. da terceira dinastia, foi consagrado deus, e em sua honra erigiram-se vários templos.
À estética na índia
Da medicina na antiga índia pouco se conhece. Mas certo está que manteve seu caráter primitivo por muito mais tempo que a dos demais povos da Antiguidade, talvez pelas limitações originadas de proibições religiosas, como a da dissecção de cadáveres.
A base das prescrições terapêuticas era a dieta, quase sempre vegetariana. Havia, inclusive, leis contra o abuso de licores. Frequentemente valia-se das plantas medicinais, como os clisteres oleosos; e para completar os tratamentos, banhos de vapor sob as mais variadas formas, inalações, sangrias e ventosas.
A cirurgia hindu é que foi prodigiosa. Aperfeiçoou a técnica das operações plásticas, que só seriam efetuadas pelos ocidentais no período medieval, sobretudo a rino-plastía, operação de restauração do nariz. Para tanto utilizavam, como instrumentos, facas, serras, ventosas, tesouras, ganchos, fórceps, sondas e agulhas para sutura.
No mais, também entre eles a higiene se desenvolveu por sua sacralização: os sacerdotes e legisladores, figuras muito importantes na sociedade, tinham a higiene como componente de seu código moral. Assim, as abluçoes, por exemplo, eram observadas com o maior rigor, em verdadeiras liturgias.
De qualquer forma, a medicina da antiga índia enquadra-se nos sistemas pré-científicos.
Na Grécia, mais científica
Só na Grécia é que a medicina evolui para algo mais próximo a uma ciência. Várias condições possibilitaram esse avanço, mas sobretudo uma maior liberdade de pensamento, investigação e observação, e uma estrutura político-religiosa mais lúcida.
Assim, a medicina deixa de ser resultado de práticas isoladas e experiências acidentais, para ser objeto de aprofundado estudo. Grupos de discípulos, com seus mestres, especulam as causas e razões da vida, independentemente de qualquer culto: a religião não passa de um mito poético, bastante vulnerável, bem como todas as demais tradições.
Esse clima criou Hipócrates. Nascido em 460 a.C., é tido como pai da Medicina. Suas formulações práticas e teóricas transmitiram-se por muitos séculos, síntese dos conhecimentos esparsos anteriores, que coligiu e enriqueceu com novos conceitos e investigações. Provou que a doença é um processo natural, c a função do médico foi por ele definida como de ajuda às forças naturais do organismo.
Três séculos depois da morte de Hipócrates, suas noções foram sistematizadas no uue se chamou "Coleção Hipocratica": são vários compêndios, entre os quais o "Juramento Hipocrático", tratado de ética profissional; "Sobre os Ferimentos da Cabeça", exposição dos métodos de trepanação; "Sobre as Fraturas e Deslocamentos"; "Sobre a Cirurgia"; "Prognóstico", coletânea de teorias para a previsão do curso das doenças; e "Aforismos", uma série de frases breves, resumindo determinados conhecimentos gerais. Muitos entraram para o repertório dos provérbios populares.
Entre as doenças que catalogou estão: cirrose, caxumba, difteria, erisipela, câncer, doenças do sistema nervoso e febres. E, para tratá-las, a diretriz hipocratica era auxiliar a natureza em seus processos e poderes curativos. No livro "Do Alimento", diz: "A natureza age sem mestres".
Em síntese, a medicina hipocratica combinou um amplo conhecimento de ciências naturais à rica experiência em medicina prática, e a um raciocínio lógico e lúcido a respeito das relações de causalidade.
A anatomia em Roma
Os romanos foram um povo de cultura deficiente até conquistarem a Grécia, quando absorveram, além dos sistemas filosóficos, o da medicina, embora sem aprofundá-los. Daí a ausência, nesse período, de nomes notáveis. A educação médica constituía assunto privado, ao contrário, poi exemplo, da educação militar. E mesmo entre os professores, o mais importante era grego: As-clepíades de Bitínia (século II a.C.).
Sua escola, em Roma, sobreviveu-lhe. No mícío, os alunos eram poucos, depois formaram grupos, e logo estavam sendo estabelecidas escolas subsidiárias nas cidades vizinhas. Promoviam, essencialmente, o treino de médicos militares, embora não houvesse nessa esfera nenhum interesse científico. Assim, paradoxalmente, a maior contribuição para o desenvolvimento da medicina romana veio do exército: o sistema hospitalar.
Houve, também, de relevante, a presença de Galeno. Viveu de 130 a 200 d.C, num dos muitos domínios de Roma, Pérgamo — reino da Ásia Menor —. culturalmente muito próximo da Grécia. Foi o primeiro dos estudiosos romanos de anatomia e fisiologia, e forneceu uma síntese médica final da Antiguidade, padrão efetivo da medicina durante treze séculos. É de grande valor sua obra, principalmente pela elucidação de erros anteriores. Vesálio demonstrou que Galeno havia incorrido em erros justificáveis na sua época, mas que não podiam continuar sendo conscientemente aceitos.
De qualquer forma, Galeno deu à anatomia e à fisiologia a feição de ciência. As invasões bárbaras impediram que esse trabalho frutificasse, que sua influência se expandisse. E não só em relação aos ensinamentos de Galeno, como de todos os demais: a medicina volta a escorar-se em conceitos e preconceitos, mágicos e religiosos.
Uma questão de sobrevivência
Na Idade Média, a medicina é uma versão deturpada do que se pensava ter sido o galenismo. No entanto, a obra de Galeno e a de Hipócrates não permaneceram longo tempo no esquecimento. Com o propósito de estudar suas obras, revè-las e atualizá-las, fundou-se, no século IX, a Escola de Sa-lerno. Em pouco tempo ganhou fama e, com ela, estudantes do mundo todo. Mas os assuntos eram tidos por esgotados, e a investigação dispensada. Não havia ciência, portanto; e só no século XVI a medicina reaparecia como tal, inclusive com método próprio.
Um conjunto de fatôres propiciou esse ressurgimento. Entre eles, a invenção da imprensa, a expansão do mundo pelos descobrimentos, a renovação do interesse pela língua grega, o questionamento levantado pelas dissensões religiosas. Cientistas e estudiosos eram a mais nova aquisição da humanidade, para desfazer seus antigos erros e agitar a estagnação em que se acomodara.
Nesse panorama se situou André Vesálio, pai da anatomia: publica a "Estrutura do Corpo Humano", em 1453. Totalmente inovador, esse trabalho foi o resultado das primeiras experiências efetuadas com cadáveres. Embora Vesálio houvesse repetido muitos enganos cometidos por Galeno, eram justificáveis pela época em que viveu. Como o período fosse propício aos estudos, Vesálio foi seguido por muitos outros pesquisadores: William Harvey dedica uma obra à exposição de duas conclusões sobre o funcionamento do coração como sede do sistema circulatório, que até então se pensava fosse o fígado. Quase contemporaneamente, o italiano Marcelo Malpighi descobre os vasos capilares. Alguns decénios depois, João Ba-tista Morgagni constata a diferença de estrutura entre os órgãos sadios e os enfermos. Cria a anatomia patológica. Em 1796, Ed-ward Jenner descobre a vacina contra a varíola.
No século XVIII, surgiria William Smel-lie, escocês, o primeiro a se interessar pela natalidade e a obstetrícia. O século XIX traria revelações importantíssimas. Graças aos estudos de Louis Pasteur, foram descobertos os germes patogênicos, microscópicos geradores das doenças infecciosas. Também graças a êle foram minorados dois perigosos flagelos: o carbúnculo e a raiva.
Outros germes de doenças foram isolados. A etapa que sucede à identificação do bacilo é estabelecer o meio de anular sua ação. É a medicina preventiva, à base de soros, vacinas e eficazes medicamentos.
Em 1815, Faraday atinou com as propriedades anestésicas do éter. Ainda com base nas pesquisas de Pasteur, Lister eliminou os germes do campo operatório, vaporizando a sala de operação com ácido fênico, abrindo assim perspectivas para intervenções antes consideradas impossíveis, devido à incidência da septicemia — infecção gerada por germes do ar. Em 1896, Wilhelm Roentgen anunciou a descoberta dos raios X, o que lhe valeu o prémio Nobel em 1901.
E neste nosso século, destrelou-se a roda do progresso: em 1904, o alemão Paul Ehrlich utilizou uma droga capaz de matar os parasitos no tecido de um hospedeiro — receptor do parasito — sem afetar o hospedeiro; em 1928, Sir Alexander Fleming che gou à peniciíina; já em 1912, Casimiro Funk isolara o ácido nicotínico, denominando-o "vitamina"; em 1921, Banting e Best isolaram o hormônio insulina, possibilitando o tratamento do diabetes — excesso de açúcar no sangue. Outros germes de doenças foram sendo grada ti vãmente descobertos: R. Koch isolou o bacilo da tuberculose e da cólera; E. Klebs e F. Loeífle, o da difteria; G. Han-sen, da lepra; K. Eberth, da febre tifóide; A. Fraenkel, da pneumonia; A. Nicolayer, do tétano; A. Yersin, da peste bubônica; Vasserman, da sífilis.
Medicina
O curandeiro, "médico" primitivo, trocou as vestes e máscaras coloridas por outras brancas e esterilizadas. O espírito de intuição que o orientava cedeu lugar ao espírito científico. A tribo transformou-se em grandes sociedades industriais e urbanas, com doenças específicas, como o câncer. E a rudimentar arte de curar ramificou-se em inúmeras especializações, todas com o mesmo objeti-vo: prolongar a vida. E cada especialidade, com seus próprios instrumentos: da esquerda para a direita, proveta para o exame de urina (urologia); aparelho ra-diológico (tisiologia); broca elétrica (odontologia); espelho frontal (oftalmologia); especulo auricular (otorrinolaringologia); eletroence-faló grafo (neurologia); eletrocardiógrafo (cardiologia); e o leito clínico usado em hospitais.
enc. conhecer abril
..