4.3.09

Onde mora a cultura

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Zaratustra perambulava pelos bosques, a discutir com árvores e pedras. Na verdade dialogava consigo próprio, já que se afas­tara dos demais homens. Eremita, abrigado em nada mais con­fortável que uma caverna, por anos compilou o saber que ver­teria depois sobre os homens. Por companhia tinha apenas uma águia — símbolo da sabedoria.

Zaratustra, personagem porta-voz do filósofo alemão Nietzsche (1844-1900), é a figura típica do sábio antigo, do homem que busca­va uma cultura universal reunindo conhecimentos dos mais variados. E é o antípoda do "sábio" de hoje, especializado, às vezes, em um só aspecto de uma ciência. Essa transformação dos horizontes do cientis­ta operou-se por muitos motivos. E pode ser acompanhada através da história das universidades.

A catedral do saber
Quando começa a Idade Média, com o esfacelamento do Império Romano no século V, a vida cultural se enclausura nos mosteiros. Há mais de um século vinha se transferindo das escolas romanas, onde o ensino era ministrado por preceptores, cm sua maioria gregos trazidos a Roma como escravos, para os templos católicos, em geral cia Ordem dos Beneditinos. Esses mosteiros europeus (na Gália atual França; Germània — atual Alemanha; Ilhas Britânicas e Escandinávia) mantinham duas escolas. Uma interna, destinada aos religiosos, mesmo noviços. Outra externa, para os leigos, Nas duas, os currículos, muito parecidos, dividiam-se em dois cursos: trivíum e quadrivium. O primeiro com­preendia disciplinas como a gramática, retórica e lógica c durava de quatro a cinco anos, ao fim dos quais o aluno recebia o título de bacha­rel em artes. O segundo, incluindo aritmética, geometria, astronomia e música, tinha duração de três ou quatro anos. Mas, o conteúdo das matérias era mais amplo do que os nomes. Assim, a gramática incluía noções de latim; por aritmética entendia-se toda a teoria dos números; a geometria englobava a geografia e a história natural; e a astronomia implicava em estudos de química e física.
Para os internos, seguia-se, aos dois cursos básicos, um de teologia. E para os que se sobressaíssem nessa matéria havia as escolas abadais, anexas às abadias, que forneciam cursos mais aprofundados. E fora es5as havia escolas paroquiais, que ministravam apenas as primeiras letras, o serviço comum da Igreja e o catecismo.
Com o aparecimento das cidades, no século XI, surgem as catedrais, onde escolas exteriores, destinadas ao clero secular (não confinado nos templos), recebem o nome de escolas catedrais.


Paris,universidade-luz

Interesses comuns acabam por aproximar pessoas. Foi o que aconteceu com mestres e discípulos, que se agremiaram numa organização seme­lhante às corporações artesanais do século XII: o Studium, mais tarde chamado stuaiuM generais. Deles surgiram as universidades como as conhecemos — conjunto de faculdades e institutos destinados ao ensino e à pesquisa. E o primeiro a assumir essas feições foi o studium generale de Bolonha, voltado às investigações no campo jurídico, ao qual o Papa Inoeêncio VI faz anexar, em 1352, uma faculdade regular de teologia.
No entanto, a ancestral mais próxima da universidade moderna foi a de Paris, para cuja fundação e desenvolvimento concorreram três fatòres principais. Primeiro, a existência de um meio cultural flores­cente, em que dominava o estudo da lógica, a "ciência das ciências", e onde se destacava Abelardo, professor da Escola de Notre-Dame, cujas aulas atraíam discípulos de várias partes da Europa. Segundo, uma cons­ciência da própria unidade entre alunos c mestres. Terceiro, o interesse dos reis da França e dos papas em proteger essa população de estudiosos. Os reis não desconheciam as vantagens da contínua circulação, pela capital, de estrangeiros em busca de instrução. E os papas não deseja­vam ver a cultura sair do âmbito eclesiástico.
O auxílio papal foi o mais decisivo. O verdadeiro fundador da Uni­versidade de Paris foi Inocèncio III. E seus sucessores, principalmente

Gregório IX, os patronos do seu desenvolvi­mento. Desde os primeiros anos de existência, entretanto, formou-se uma corrente contra a ingerência dos papas sobre a organização da Universidade, que acabou por ser derrotada. A tutela do papado impôs-se definitivamente sobre a Universidade de Paris. Assim, os estu­dos de direito romano eram interditados e os de direito canónico recebiam incentivos.
Pouco a pouco, Paris assume feições de me­trópole teológica da Alta Idade Média. Torna-se uma força espiritual e moral estreitamente ligada à Igreja Católica. Em 1292, o Papa Nicolau IV autoriza seus professores a lecionar em qualquer outra universidade sem prestar novo exame. A Universidade de Paris foi o nascedouro da filosofia que norteou o homem medieval, através de dois de seus alunos: Tomás de Aquino e Alberto Magno.

Luzes por toda parte
Enquanto a Universidade de Paris absorvia a preocupação dos papas, o stuãium generale de Oxford, na Inglaterra — cujas notícias mais antigas remontam a 1168, mas não fixam a da­ta de fundação —, desenvolvia-se mais livremente. Aí, a matemática e a física, reveladas pelos sá­bios árabes, que inclusive traduziram textos gregos, prevaleceram sobre a teologia. O mes­mo acontecia em Cambridge, cujo stttâium ge­nerale foi fundado para absorver os exceden­tes de Oxford. E no resto da Europa iam sur­gindo muitos studium generale, graças à ação papal: Montpellier (criado por Nicolau IV em 1829); Orléans, Toulouse, Angers, Avignon, Poitiers, na França. Na Espanha: Valla-dolid (1346), obra de Clemente VI, e Sala­manca, criada pelo Rei Fernando III, de Castela.
Em Portugal, o studium generale de Lis­boa é criado em 1290, para ser definitivamen­te instalado em Coimbra, em 1537.
Em 1347, Clemente VI reconhece o stu-dtum generale de Praga, frequentado por estu­dantes de várias regiões da Áustria. Na região da Alemanha atual, Heidelberg, é reconhecido em 1385. Em 1388, Urbano VI reconhe­ce oficialmente a Universidade de Colónia, conhecida desde muito antes pelos trabalhos de religiosos dominicanos. Os franciscanos consa­gram a de Erfurt, reconhecida em 1379. Nos Países-Baixos surge a Universidade de Louvain (1426), uma das poucas a ser controlada por uma municipalidade: a de Brabant.

Paris dita as regras
Mas, a Universidade de Paris não perde sua importância. Todas as demais, apesar das características próprias, seguem os seus dita­mes. Vinte e um anos de idade e seis de estu­dos, divididos em bacharelado, licenciatura e primeira aula (espécie de exame final), para formar um mestre em artes com licença para ledonat artes liberais; 34 anos de idade e catorze de estudos, divididos em três bacha­relados para ser mestre ou doutor em teologia.
Paris definira também os dois principais métodos de ensino: a lição — leitura e expli­cação de certos textos — e a discussão — cer­tame de debates presidido por um ou vários mestres. Só que em Paris os temas eram teo­lógicos, enquanto em Oxford, por exemplo, discutia-se a geometria, a aritmética, a astro­nomia, matérias em que sempre se destacou um aluno brilhante: Roger Bacon (1214?-1294?). Mais tarde, ête escreveria obras, co­mo um estudo de línguas filosóficas, uma ex­posição do método matemático e exemplos de sua aplicação nas ciências sagradas e profa­nas, um tratado de geografia, outros de astro­logia e suas aplicações, um sobre a visão, e uma descrição do método experimental.
No século XIV, a medicina, até agora rele­gada ao esquecimento, vai equiparar-se ao di­reito e à teologia. Desenvolve-se sobretudo nas escolas de Salerno, Montpellier e Bolonha. A primeira dissecção de um cadáver (1315), procedimento que só passaria a ser lícito de­pois da bula do Papa Sixto IV (1414-1484), dá um grande impulso à anatomia.

Universidade contra Renascença
Enquanto isso, a roda do tempo dava uma volta completa. Por toda parte, o feudalismo, caracterizado por uma economia agrária de subsistência que girava em torno da grande propriedade rural, começava a ser substituído por uma nova forma de produção cuja mola era o comércio e, o centro, a cidade. O comér­cio terrestre uniu as diversas regiões da Euro­pa, e a expansão marítima revelou novos con­tinentes, mundos desconhecidos dos europeus.
E as preocupações humanas descem do Céu para a Terra. Já no século XIV, a maioria das instituições e ideias características da, época feudal entram em decadência. A autoridade universal do papado é posta em xeque. A filo­sofia medieval, elaborada nas universidades, co­meça a ser ridicularizada c, aos poucos, vai sen­do minada a supremacia das interpretações reli­giosas e éticas da vida. Em seu lugar surgem novas instituições e -modos de pensar, cuja importância é suficiente para imprimir aos séculos que se seguiram, o cunho de uma civi­lização diferente. É o Renascimento que se ini­cia. E o homem renascentista substitui a exal­tação divina pelo humanismo, a fé mística pela razão. A ação consciente c racional é va­lorizada. E ela implica num domínio da na­tureza e suas leis. Assim, os conhecimentos progridem para se transformarem em ciência.
Em 1543, Nícolau Copérnico publica De Re-volutionibus Orbiwn Coelestiunt, onde expõe sua teoria
heliocêntrica (o Sol é considerado centro do sistema solar), questionando as con­cepções até então aceitas, que colocavam a Ter­ra como centro do universo. Além das novas teorias, surgem novas formas de investigação baseadas na pesquisa e experimentação.
Entretanto, todo o movimento de renova­ção intelectual do Renascimento se processou às margens da universidade, apegada às tradi­ções e ao pensamento medieval.
Profundamente ligada à Igreja, a universi­dade será o centro das disputas teológicas, que caracterizaram esta época de Reforma protestan­te e Contra-Reforma católica. A Reforma Pro­testante, que eclodia na Alemanha, na Europa central e setentrional e mais tarde na Inglater­ra, voltava-se contra o poder da Igreja Católica sobre toda a Europa. As universidades se in­corporam ao movimento. Surgem assim as pri­meiras universidades protestantes. A de Wit-tenberg, na Alemanha, fundada em 1502, tor­na-se o quartel-general de Martinho Lutero e centro irradiador da doutrina luterana. A de Marburg é fundada em 1527, em Hessen, gra­ças a propriedades confiscadas à Igreja Cató­lica. A elas seguem-se a de Konigsberg, na Prússia, em 1544; a de Jena, no Estado ale­mão de Turíngia, em 1558; e a de Helmstedt, ao Norte da Alemanha, em 1575. Ao movi­mento reformista, a Igreja Católica responde com a Contra-Reforma, oficializada pelo Con­cílio de Trento (1545-1563), que esclareceu a doutrina católica, definindo certos concei­tos, como a concepção de que a salvação não é obtida apenas pela fé, mas também pelas boas ações. Dentro do espírito da Contra-Re­forma, é fundada a Companhia de Jesus (1534), destinada a expandir o cristianismo na Europa e nas terras do Novo Mundo. Li­gadas a este movimento surgem algumas uni­versidades: a de Bamberg, no Sul da Alemanha (1648) e a de Innsbruck, na Áustria (1672). Os jesuítas tomam conta da educação na FranÇa e na Espanha, e a Universidade de Paris se transforma num grande centro jesuítico.
Envolvidas nos debates religiosos, as univer­sidades foram, de início, centros de combate das novas teorias surgidas do Renascimento. Gali-leu Galilei (1564-1642), professor de matemá­tica na Universidade de Pádua e partidário de Copérnico, é levado em 1633 à Inquisição, que considerava herética a teoria heliocêntrica.
Entretanto, elas não estiveram completamente alheias ao desenvolvimento dos conhe­cimentos científicos. Na Inglaterra e na Ale­manha surge uma série de descobertas im­portantes. Em 1600, William Gilbert (1540?-1603) publica sua grande obra sobre o mag­netismo. William Harvey (1578-1657) desco­bre a circulação do sangue. Leeuwenhoek (1632-1723), naturalista holandês, descobre as bactérias e os protozoários. Newton (1642-1727) e Leibniz (1646-1716) desenvolvem o cálculo infinitesimal e diferencial.


Revolução universitária
Em 1693, surge a Universidade de Halle, no Nordeste alemão, considerada a primeira universidade moderna por separar os estudos de filosofia da teologia. Para ela dirigiram-se eminentes professores, entre os quais Christian Thomasius e H. Francke, expulsos da Univer­sidade de Leipzig por suas. ideias renovadoras. Thomasius realiza aí uma verdadeira revolução ao dar suas aulas em alemão, em substituição ao latim, língua oficial em todas as instituições universitárias. Apesar dos protestos iniciais, sua atitude é imitada por toda a região alemã.
Nas últimas décadas do século XVIII, en­tretanto, essa universidade cai para um plano secundário, onde se alinha com as de Viena (Áustria) e Glasqow (Escócia), enquanto bri­lham as de Leiden, Gottingen, Edinburgh. Principalmente Gottingen, que enfatizou o es­tudo das ciências físicas, combinando ensino e investigação. E sua importância pode ser medi­da pelo crescimento de sua biblioteca, que .em uma geração colecionou 60 mil livros e 100 mil folhetos. O ensino, de um nível razoável, era ministrado pelas 22 universidades france­sas, pelas trinta do Sacro Império Romano-Germânico, pelos colégios italianos, ingleses e escandinavos.
O século XVIII vai caracterizar-se pelo pre­domínio do estudo das ciências físicas em subs­tituição à filosofia e à teologia, é bem verdade que poucos dos descobrimentos científicos ti­veram lugar nas faculdades, mas é certo tam­bém que a base dos princípios físicos e matemáticosnewtonianos partiram de um texto univer­sitário publicado por Oxford, em 1702: Astronamiae, Physicae et Geometriae Elementa. E é sintoma de tima explosão científica próxima a existência de um observatório astronómico em Leiden (Países-Baixos) desde 1706, e a partir de 1738 em Uppsala (Suécia). Mas os grandes descobrimentos desse século deveram-se a homens não relacionados diretamente com as universidades: Réaumur (1683-1757), que estudou os fenómenos térmicos, e Spallanzani (1729-1799), que investigou fenómenos rela­cionados à digestão, Priestley (1733-1804), que deu grande impulso aos estudos sobre ele-tricidade, e Lavoisier (1743-1794), fundador da química "moderna.
Fundaram-se sociedades científicas, como as. academias da Suécia, Rússia e Dinamarca.

De 1793 a 1808, as universidades e colé­gios da França fecharam suas portas, por um decreto da Convenção Nacional, que exercia o Governo. Napoleão I as reabriria, traçando para elas um esquema que tornava o ensino objeto de controle estatal.

Universidade na era da especialização
Vencendo todos os empecilhos, a ciência se preparava para vir à superfície da vida nove-centísta. Na sociedade, seu aparecimento é precedido por uma enorme crença nos cientis­tas e na ciência, enfim. As descobertas e in­venções se sucedem rapidamente, quase em ondas. O método experimental é aplicado a quase toda espécie de conhecimento. As uni­versidades passam a dispor de laboratórios e os cientistas têm sua subsistência garantida pelas grandes indústrias e pelos governos.
O conhecimento científico, ao mesmo tem­po que se alarga horizontalmente, se verticaliza, se especializa. Nessas condições, os sá­bios no sentido antigo desaparecem.

Como numa cidade, ao anoitecer, uma luz se acende, e depois outra, e de repente toda a cidade está iluminada, as universidades sur­giram em todas as regiões do mundo: Estados Unidos, América Latina, índia, China, Ja­pão, Austrália. No Brasil, a primeira foi a de São Paulo, fundada em 1934. embora cursos livres de direito, medicina, engenharia, agri­cultura, veterinária existissem desde 1809, À de São Paulo seguiu-se a Universidade do Rio de Janeiro, em 1935.

Enc. Conhecer/ abril

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